PROGRAMA | BIBLIOGRAFIA (O jogo e as ruínas)

PROGRAMA

Primeira aula: Introdução

Nesse primeiro encontro, pretendo, além de expor a estrutura do curso, introduzir os temas gerais a partir dos textos iniciais de Roberto Bolaño. Em especial, gostaria de tratar dos fatores que circundam essa primeira produção (inclusive, sua participação no movimento infrarrealista) e que depois se tornarão materiais para os romances de Bolaño: sua relação com a poesia (que, apesar de considerar sua produção principal, ele acaba por deixar em segundo plano), com os concursos de literatura, com os ateliês de criação, com as editoras, etc. Atentarei para alguns aspectos biográficos, esboçando as condições de produção de suas obras, inclusive, o curtíssimo tempo em que ela foi produzida (quinze livros em doze anos), buscando entender como isso se torna um elemento constitutivo de uma escrita “violenta e acidentada”.

 

Segunda aula: A violência da história e a possibilidade de uma literatura

Nessa aula, irei re-contextualizar a obra de Bolaño dentro da produção que o precede (em especial, certos grupos pós-vanguardistas como o escena de avanzada, ou ainda, a chamada geração do “boom” latino-americano) com a qual ele trava uma relação bastante tensa através de seus livros A Literatura Nazista na América e Estrela Distante. Utilizando uma série de recursos que serão lhe recorrentes – um certo tipo muito específico da alusão e da paródia, representações do ato de escritura e de leitura, etc –, Bolaño começa a estabelecer aquela que seria uma pergunta maior de sua obra: como é possível fazer uma literatura que não seja irresponsável frente sua própria história? Trata-se de um mal-estar com o tipo de intelectualidade e de produção que se deu na América Latina durante e após as ditaduras militares, e mesmo do lugar que a literatura assumiu com a chegada da democracia. Não à toa, Bolaño chama esses livros de obras “morais” (e aqui seria preciso entender o estatuto dessa moralidade, que, segundo o próprio, remete às Novelas exemplares de Cervantes).
Para melhor diagnosticar o problema, pretendo retomar a leitura que Bolaño faz dos mecanismos enciclopédicos de Borges (em História Universal da Infâmia, mas também em “Tlön, Uqbar, Orbius Tertius” e a “Biblioteca de Babel”), expondo a face mais perversa desses dispositivos, e de sua relevância para se pensar a memória e a escrita latino-americana de hoje.

Terceira aula: Os jogos e suas perversões

Pensando no lugar central que a noção de jogo ocupa na literatura ocidental, principalmente em sua proximidade com os atos de escrita e de leitura (algo que surge desde Poe e Mallarmé e que passar por autores como Borges, Cortázar, Beckett e outros), gostaríamos de analisar a forma como Bolaño a emprega, principalmente como elemento central da narrativa de Estrela Distante, retomando-o de um romance anterior até a pouco inédito, O Terceiro Reich. Trata-se de jogos de tabuleiro chamados wargames e que nesses dois romances atuam, diferentemente da maneira usual, como uma espécie de versão invertida e odiosa da escrita literária, ainda que muito próximo dessa: já não se trata mais de expor, subverter ou reformular regras, nem de instaurar uma atividade sem fins, isenta de qualquer instrumentabilidade, mas sim de ver na aceitação do jogo ou de uma certa versão do jogo (o wargame que leva justamente o título de “O Terceiro Reich”) justamente um bloqueio para o desenvolvimento da escritura, de uma espécie de impedimento a qualquer acesso a ordem vigente. O jogo aqui é algo absolutamente violento (sua cumplicidade com o nazismo é patente nos dois livros), ao mesmo tempo em que parece algo imobilizador e mesmo inocente. Aqui revisitaremos as leituras que Bolaño faz do escritor francês Georges Perec, autor que talvez tenha levado ao extremo a relação entre escrita literária e jogo na prosa do século XX, buscando mostrar como o chileno herda e re-significa certos processos de organização do texto literário.

Quarta aula: Confissão e inquérito

Pensando na longa história que a narrativa policial tem na literatura latino-americana desde Arlt e Borges, buscaremos voltar aos seus fundamentos juntos com Edgar Allan Poe, revisando não só os fundamentos que seus contos estabeleceram (“Crimes da rua Morgue” ou “ A Carta roubada”), mas também seus ensaios poéticos (notoriamente, “Filosofia da composição”, que apesar de ser um texto sobre poesia é sempre invocado como uma espécie de “teoria do conto”). Isso será fundamental para o estudo da obra poética mais tardia deixada por Bolaño (em especial, Los Perros Románticos), cuja parte significativa foi classificada pelo próprio autor como uma “poesia policial”. É deste ponto que pretendemos abordar o seu principal romance, Detetives Selvagens: em sua relação tensa com a poesia, não só porque há uma espécie de dissolução (ou de disseminação – é difícil precisar) dela, mas porque, ao mesmo tempo, é ela quem fornece o núcleo narrativo deste romance (e mesmo do próprio processo de escrita desse livro: vários personagens de Bolaño surgem primeiro em títulos de seus poemas, para depois serem incorporados em suas narrativas). Por isso, iremos nos voltar a certos elementos que perpassam tanto a poesia como a narrativa policial – isto é, elementos como confissão, revelação, expressão e ato poético – a partir do modo como Bolaño lê tal tradição desde sua fundação por Poe.

Quinta aula: A elipse poética

Retomando o tema do encontro anterior, agora nos centraremos em Detetives Selvagens, retomando a problemática da desaparição da poesia: não só da tradição de Cesárea Tinajero, ou mesmo de Ulises Lima e Arturo Belano, mas da própria poesia como pretenso centro ausente da obra de Roberto Bolaño. Aqui será preciso entender como no escritor chileno o esquecimento e a destruição aparecem motores da/na história da literatura. Iremos nos deter na própria estrutura desse romance, que se divide entre diário e inquérito, retomando não só as discussões sobre Poe, como também trançando uma oposição com a organização de seus primeiros livros, i.e., com La Literatura Nazi na América e Estrela Distante. Por fim, iremos nos deter na cena final de Amuleto, na imagem de toda uma geração de poetas-lemmings, algo que pode ser encarado com o símbolo mesmo daquilo que Bolaño enfrenta por meio de seus romances.

Sexta aula: A diluição do eu em Amuleto (esta aula será ministrada pela doutoranda do DTLLC Geruza Zelnys de Almeida)

Nesta aula, como ministrante convidada, pretendo problematizar quem é o "eu que diz eu" nas memórias inventadas de Auxilio Lacouture, a narradora de Amuleto, livro exemplar para se refletir, a partir da metáfora da liquidez contemporânea, acerca de um espaço de fluxos no qual o narrador também se fluidifica tornando complexa e incapturável sua presença-ausência. Para tal, busco analisar as possibilidades inscritas na relação entre os nomes, em especial Auxílio, e suas implicações na (des)construção do arquivo Amuleto como representação do irrepresentável: o ano de 1968. Esse movimento fará com que o trânsito entre memória e esquecimento seja explorado em dois registros: como diluição do eu nos outros e como diluição do tempo, ambos culminando na espectralização da entidade narrativa, do acontecimento do terror e das marcas de tortura potencialmente presentes na obra. Em alguns momentos da aula, farei menção aos testemunhos recolhidos por Elena Poniatowska no livro La noche de Tlatelolco (2000) estabelecendo um possível diálogo entre realidade e ficção.

Sétima aula: Bolaño e a morte (As últimas palestras)

Nesse penúltimo encontro, pretendo trazer para a discussão uma parte dos últimos textos de Bolaño, em especial, suas palestras. Isso porque nelas podemos enxergar uma espécie de balanço sobre sua própria obra e uma avaliação sobre o estado da literatura latino-americana em geral. Soma-se a isso o peso que a doença vai tendo nos escritos do autor, e de como ela vai se relacionando com o próprio ato de escrita (como se pode ler em “Literatura + Enfermedad = Enfermedad”). Também gostaria de dedicar parte dessa aula ao legado que Bolaño (e a questão que gira em torno de um “legado literário”) ofereceu a outros escritores, como Javier Cercas, Rodrigo Frésan, Enrique Vila-Matas, Daniel Sada, Alan Pauls, etc., assim como buscar analisar a própria evocação que ele faz no final da vida de autores aos quais ele pretendeu ser fiel (fiel na própria idéia de morte): Baudelaire e Mallarmé.

Oitava aula: Conclusão – Presente futuro e futuro do presente: 2666

Para fechar nosso curso, iremos analisar a forma como Bolaño trabalha o conceito de futuro em vários de seus romances, em especial através da data-símbolo 2666, que inclusive dá título ao seu último livro. Aparecem então basicamente duas possibilidades de futuro: um que é a mera reprodução do presente, de um horror que se prolonga indefinidamente, ainda que sempre de modo renovado (basta olhar para onde aponta Literatura Nazi) ou um futuro que é a busca incessante pela própria legitimidade do seu tempo enquanto outro tempo, isto é, como busca no presente por outras temporalidades e formas de escritura. Nesse ponto, retomamos a questão da literatura como instância de uma tensão com sua própria história, tal como havíamos visto na segunda aula. Assim, ao lermos seu último romance, que ele mesmo classifica como uma espécie de ficção-científica, podemos entender as expectativas que Bolaño deposita na literatura, em sua aposta na literatura enquanto construção de um tempo outro. Para isso, retomaremos os diversos textos que o chileno dedica ao norte-americano Philip K. Dick e ao modo como esse autor trabalha formas absolutamente diversificadas de relação entre passado, presente e futuro.

Nota: A grande parte dos textos abordados tem tradução para o português. Nas exceções, irei me comprometer em oferecer traduções de certos trechos específicos ou mesmo de textos na integra, sobre os quais já venho trabalhando.


Bibliografia:

 

De Bolaño (em português):

BOLAÑO, Roberto. 2666. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
_______. Amuleto. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
_______. Detetives selvagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
_______. Estrela distante. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
_______. Noturno do Chile. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
_______. Putas assasinas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
_______. Pista de gelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
_______. O Terceiro Reich. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
_______. “Poemas de Roberto Bolaño” [Trad. Fabrício Corsaletti]. Almanaque Lobisomem. São Paulo, 2010.


De Bolaño (em espanhol):

BOLAÑO, Roberto. La Literatura Nazi en América. Barcelona: Seix Barral, 1996.
_______. La Universidad Desconocida. Barcelona: Anagrama, 2007.
_______. Entre paréntesis. Barcelona: Anagrama, 2004.
_______.“Henri simon Leprince”. In: Llamadas telefónicas. Barcelona: Anagrama, 1997.
_______.“Literatura + enfermedad = enfermedad”. In: El Gaucho Insufrible. Barcelona: Anagrama, 2003.


Sobre Bolaño:

BENMILOUD, Karim; ESTÈVE, Raphaël (org.). Les astres noirs de Roberto Bolaño. Bordeaux: Presses Universitaires de Bordeaux, 2007.

BOLOGNESE, Chiara. Pistas de un naufragio. Cartografía de Roberto Bolaño. Santiago: Editorial Margen, 2009.

BRAITHWAITE, Andrés. Bolaño por sí mismo: entrevistas escogidas.. Santiago: Ediciones Universidad Diego Portales, 2006.

ESPINOSA, Patricia. Territorios en fuga: estudios críticos sobre la obra de Roberto Bolaño. Santiago: Ed. Frasis, 2003.

JENNERJAHN. Ina. “Escritos en los cielos y fotografías del infierno. Las 'Acciones de arte' de Carlos Ramírez Hoffman, según Roberto Bolaño”. Revista de Crítica Literaria Latinoamericana. Año 28, No. 56 (2002), pp. 69-86.
PAZ, Edmundo; FAVERÓN, Gustavo (org.). Bolaño Salvaje. Barcelona: Ed. Candaya, 2008.

Outros

BORGES. Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

_______. Outras inquisições. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

DICK, Philip K.. Ubik. São Paulo: Aleph, 2008.

POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

_______. Ensaios e poemas. São Paulo: Globo, 2008.

PEREC, Georges. Vida: modo de usar. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

PONIATOWSKA, Elena. La noche de Tlatelolco. México: Editorial Era, 2010.