Programa

JUSTIFICATIVA
A proposta de ampliação dos tipos de fonte a serem usadas em pesquisas acadêmicas abriu novas possibilidades para o campo da história, e os recentes avanços em digitalização empreendidos por instituições como museus, bibliotecas e arquivos têm permitido uma abertura ainda maior para formatos antes inacessíveis. Diante disso, o presente curso se propõe a apresentar, de forma introdutória, três dessas possibilidades. Por um lado, a utilização dos inventários post mortem e listas nominativas de habitantes, e por outro, fontes visuais. O inventário post mortem é nada mais que um processo legal exigido pelo Estado, que tem por fim o arrolamento e a avaliação de bens pertencentes ao indivíduo recém-falecido e, consequentemente, a formalização de sua partilha entre os herdeiros e os legatários. Desde os anos 1950, inúmeros pesquisadores vêm se debruçando sobre esta fonte com o intuito de descortinar a sociedade escravista do Brasil nos séculos XVIII e XIX. Destaca-se, dentre outros, o estudo pioneiro de Stanley Stein (1957), que empreendeu uma análise geral da cafeicultura escravista no Vale do Paraíba, apresentando os primórdios do povoamento de Vassouras, destacando o auge de sua produção cafeeira bem como o seu declínio, ocorrido nos anos 1870. A partir dos anos 1970 e 1980, o uso de inventários post mortem se “popularizou” entre os estudiosos vinculados aos campos da História Social, Econômica, Demográfica, Agrária e Política. Salienta-se os trabalhos de Célia Muniz (1979), João Fragoso (1983), Renato Marcondes (1998), Ricardo Salles (2006) e Breno Moreno (2013). O caráter massivo e recorrente desta fonte permite ao historiador apreender a sociedade escravista no tempo, com as suas permanências e mudanças.
O uso de listas nominativas, também conhecidas como Maços de População, para a pesquisa histórica encontra hoje bastante adesão nas universidades paulistas e mineiras, cujo foco se dá sobre a Demografia Histórica. É uma documentação oficial que teve seu pedido de realização advindo diretamente da Coroa portuguesa em meados do século XVIII, pois no auge de sua modernidade ilustrada se atentou à necessidade de conhecer melhor a população de sua maior e mais rica colônia, principalmente para fins de cobrar impostos e melhor organizar as tropas militares. Estudos históricos que se utilizaram das listas nominativas puderam discutir temas importantes como, por exemplo, a decadência econômica que a capitania de São Paulo teria passado durante o século XVIII. Maria Luíza Marcílio em trabalho pioneiro chamado “Crescimento demográfico e evolução agrária paulista (1700-1836)” (2000), demonstrou que São Paulo não passou por esta suposta decadência, como também viu sua população crescer e enriquecer durante o período.
As fontes visuais, por sua vez, foram muito discutidas dentro dos estudos em história e sociologia da arte, com destaque para os trabalhos de Svetlana Alpers (1984) e Michael Baxandall (1985) e têm sido inseridas num debate sobre seu uso para a história. A proposta de Ulpiano Bezerra de Meneses (2003) é atualmente o principal norte teórico para quem deseja trabalhar com a temática. Dada a disponibilidade, cada vez mais ampla, de imagens digitalizadas, tendem a crescer as propostas que se valham dessa facilidade de acesso para usar fontes visuais em pesquisas históricas. Por isso, uma discussão introdutória sobre os principais elementos desta teoria e as possibilidades e limitações da prática seria de grande valor para dar alguma referência a possíveis novas pesquisas.
Isto posto, este minicurso propõe uma primeira aproximação à utilização dos inventários post mortem, das listas nominativas e das fontes visuais pelo historiador, visando discutir e apresentar ao público os limites e as potencialidades destes documentos. Em outras palavras, procurar-se-á problematizar as fontes em perspectiva crítica no que tange às pesquisas já realizadas, explorando as tensões metodológicas que seu uso provoca.
 
OBJETIVOS
O propósito central do curso é apresentar ao público os inventários post mortem, as listas nominativas de habitantes e as fontes visuais enquanto documentos históricos que devem ser submetidos à análise crítica. Para tal, o primeiro objetivo é apresentar a fonte em seu caráter formal. No caso das listas nominativas e inventários, serão discutidas as suas confecções e razões de ser, assim como sua contextualização história, até o resultado que pode chegar às mãos dos historiadores. Para as fontes visuais, serão discutidos os diferentes tipos de imagem que podem ser trabalhadas, a necessidade de se fazer distinção por técnica, contexto de produção, autoria e até dimensão.
O segundo objetivo é destacar as possibilidades de estudos a partir destas fontes, buscando nas obras já publicadas a base para esta discussão. Por fim, buscar-se-á revisitar algumas pesquisas a fim de levantar limitações interpretativas que decorrem do uso destas fontes na pesquisa histórica.
 
CONTEÚDO/CRONOGRAMA DAS AULAS
 
Aula 1 – Os inventários post mortem como fonte de pesquisa para a história agrária e demográfica: limites e potencialidades.
Professor Ministrante: Breno Aparecido Servidone Moreno
 
Inicialmente, será apresentada a estrutura básica desta fonte cartorial, tendo-se em vista as quatro partes constitutivas dos inventários post mortem: 1) abertura do processo; 2) arrolamento e avaliação de bens; 3) partilha dos bens; 4) documentos anexos (justificação e legalização de dívidas, licença para casamento, contas de tutela etc.). Em seguida, procurar-se-á mostrar os limites e as potencialidades do uso desta fonte para os historiadores. Por último, dar-se-á exemplos, com base na historiografia, de que os historiadores podem utilizar esta fonte no campo na História Agrária e Demográfica.
 
Aula 2 – A produção das Listas Nominativas de Habitantes e seus usos pelo historiador
Professor Ministrante: Carlos Eduardo Nicolette
 
Discutir-se-á nesta aula o quadro histórico em que as listas foram produzidas, bem como sua organização interna enquanto documento. Em um segundo momento, far-se-á uma primeira aproximação em relação aos estudos históricos que se utilizaram das listas como fonte. O objetivo desta aula é, primeiramente, apresentar os métodos da Demografia Histórica levando-se em conta as categorias de família, estratégia e posse de escravos.
 
 
Aula 3 – O uso de fontes visuais na pesquisa histórica: teoria e prática
Professora Ministrante: Nicole Leite Bianchini
 
A terceira aula consistirá em uma introdução ao uso de fontes visuais, com a discussão acerca das principais propostas que circulam pelo campo e o que elas significam na prática de pesquisa em história. As fontes visuais serão apresentadas como possibilidades de pesquisa, tendo como base os trabalhos de Meneses (2003), Alpers (1984) e Baxandall (1985). Além disso, será feita uma rápida discussão sobre os conceitos de influência e referência, criticados para a análise de imagens em seu contexto histórico, bem como as ideias de diacronia e sincronia que perpassam este estudo. Em um segundo momento, será feita uma rápida análise de uma série de imagens usando algumas das ideias trabalhadas na primeira parte, bem como uma rápida discussão sobre o uso de acervos digitais para este tipo de pesquisa, suas possibilidades e limitações. O objetivo central da aula é fazer uma primeira incursão no tema, dando algumas ferramentas teóricas principais para quem deseja trabalhar com o assunto.
 
BIBLIOGRAFIA
 
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