Programa

Objetivos:
Apresentar e discutir a obra de dois importantes escritores da literatura, o irlandês Samuel Beckett (1906-1989) e o sul-africano J. M. Coetzee (1940- ), a partir do estudo de mecanismos de duplicação e espelhamento.

O curso pretende assim fornecer alguns referenciais para a compreensão desses recursos formais e, principalmente, uma introdução à leitura desses dois autores que, em suas obras, formalizaram questões metalinguísticas e críticas centrais no debate sobre a produção literária na contemporaneidade.

Justificativa:

Dispositivos duplicativos são vastamente empregados na literatura. O Doppelgänger, ou duplicação de um personagem, talvez seja o mais conhecido. A Comédia dos Erros, de Shakespeare, O Médico e o Mostro, de Stevenson, O Duplo, de Dostoiévski, são exemplos conhecidos.

Ocorre, contudo, que a duplicação pode dar-se em outros estratos de uma obra. Assim, o próprio autor pode estar espelhado em algum personagem; ou a própria obra pode estar miniaturizada nela mesma, geralmente de modo cifrado e significativo; ou ainda, o leitor ou espectador (no caso da literatura dramática) pode ver-se transportado para dentro do texto ou do palco, de onde se estranha e incomodamente pode se observar.

Mecanismos de duplicação, de espelhamento e abismais (myse en abyme) são poderosos recursos reflexivos. Ao provocar estranhamento, provocam pensamento e comparecem geralmente associados a obras e autores com preocupações metalinguísticas e críticas.

Samuel Beckett se vale de duplicações de todo tipo; sua obra tem forte apelo metalinguístico. Se por um lado alcança criar uma forma nova de estranhamento e dar a sua versão do Verfremdugseffekt - pensado pelo estruturalismo russo, teorizado e praticado por Brecht -, também as emprega como armadilhas de abdução do leitor, por meio de algo que se pode chamar de efeito de imersão. Neste caso, pratica uma literatura menos alicerçada na expressão do que na performance, transformando a fruição da obra em experiência para o leitor ou espectador.

J.M. Coetzee, um leitor e estudioso da obra beckettiana, também lança mão do dispositivo do duplo e do recurso do espelhamento, especialmente em sua obra mais madura. Na ficção australiana coetzeeana, o recurso do duplo desestabiliza as noções de autor, personagem e narrador, enquanto o espelhamento possibilita a dramatização do processo criativo. Já na trilogia de ficção autobiográfica, Coetzee se duplica em um “ele” impessoal, buscando problematizar a escrita de si e borrar os limites entre ficção e não ficção. Nessas obras, o escritor cria um pacto ambíguo com o leitor, levando à reflexão acerca da validade da ficção no mundo contemporâneo.

Conhecer a literatura em sua construção por espelhamento, duplicação ou abismo é entender não apenas uma estrutura afeita à reflexão como conhecimento, mas é também adquirir instrumento crítico para fruir obras literárias de modo mais abrangente e novo.

Conteúdos por aula:

Aula 1

Introdução à obra de Beckett e Coetzee

Introdução a Beckett e sua obra: quem foi e qual a importância.
I. A prosa de Samuel Beckett: novelas, romances e textos curtos.
II. A dramaturgia de Samuel Beckett: peças teatrais, radiofônicas e televisivas.
III.Entre a metalinguagem e a fenomenologia da imaginação.

Introdução a J.M. Coetzee e sua obra: quem foi e qual sua importância.
I.Os romances de Coetzee: fases sul-africana, australiana e autobiográfica.
II. Os ensaios de Coetzee: leitor de Beckett e do cânone ocidental.

Aula 2

Duplas e duplicação em Beckett

Comentário do romance Molloy: duplicação de personagem e enredo
Comentário da peça teatral Esperando Godot: duplicação da platéia
Comentário da peça teatral A Última Gravação de Krapp: implicações filosóficas dos mecanismos duplicativos

Aula 3

Mise en Abyme em Beckett

Comentário da obra Improviso de Ohio: recurso abismal e efeito de imersão
Comentário da obra Companhia: multiplicação de vozes narrativas
Comentário da obra televisiva Nacht und Träume: a duplicação como ética autoral e seu efeito sobre o público

Aula 4

Duplos e espelhamento em Coetzee
Comentário do romance Elizabeth Costello: duplo do autor e dramatização da voz autoral.
Comentário do romance Homem Lento: duplicação do narrador e problematização da construção da personagem
Comentário do romance Diário de um ano ruim: contaminações, espelhamentos e dialogismo.

Aula 5

A duplicação do eu em Coetzee
Comentário do romance Infância: implicações do ele como duplo do eu.
Comentário do romance Verão: multiplicação dos Coetzees e o coro de vozes.

Considerações finais sobre o curso

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bibliografia primária:

I. Obras de BECKETT, Samuel

Companhia e outros textos. São Paulo: Globo, 2012.
Esperando Godot. São Paulo: Cosac&Naify, 2005.
Molloy, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
Nacht und Träume: Disponível em: . Acesso em: 2 jun. 2020.
The Complete Dramatica Work. London: Farber and Farber, 1990.

II. Obras de COETZEE, J.M.

Diário de um ano ruim. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
Elizabeth Costello. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Homem lento. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Infância: Cenas da vida na província. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Verão: Cenas da vida na província. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

III. Bibliografia Crítica

ANDRADE, Fábio de Souza. Samuel Beckett: o silêncio possível. São Paulo: Ateliê, 2001.
CRUZ, Talita Mochiute. A ficção australiana de J. M. Coetzee: o romance autorreflexivo contemporâneo. 2015. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. doi:10.11606/D.8.2015.tde-10092015-160114. Acesso em: 2 jun. 2020.
CRUZ, Talita Mochiute. Coetzee lendo Beckett. EUTOMIA, v. 1, p. 92, 2018. doi:
https://doi.org/10.19134/eutomia-v1i20p92-99. Acesso em: 2 jun. 2020.
GONÇALVES, Lívia Bueloni. Em busca de Companhia. São Paulo: Humanitas, 2018.
ROSENFIELD, K.H.; PEREIRA, L. F. (Orgs.) Lendo Coetzee. Santa Maria: Editora UFSM, 2015. [E-book]
VASCONCELLOS, Cláudia Maria de; Samuel Beckett e seus duplos - espelhos, abismos e outras vertigens literárias. São Paulo: Iluminura, 2017.
________________. Teatro Inferno: Samuel Beckett. São Paulo: Terracota, 2012.