Programa

[Ementa/ Objetivos]

No contexto de efervescência de ideias políticas, durante a Revolução francesa, a tematização da condição das mulheres na política e na sociedade ganhou novo fôlego. Isso porque o questionamento da hierarquia da velha sociedade não poderia se articular sem a reflexão acerca do lugar que caberia às mulheres numa república que ampararia a igualdade política em “direitos inalienáveis do homem”, afirmados na pretensamente universal Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Assim, um efeito inesperado da Declaração de 1789 foi a apresentação de demandas por diferentes grupos sociais, e não foi diferente para as mulheres (cf. Singham, 1994).

Embora certas obras do período revolucionário sejam apresentadas pelo consenso historiográfico como marcos de um movimento feminino, não se pode afirmar que a Revolução francesa tenha propriamente inaugurado reivindicações feministas. Com efeito, o curso aborda a construção e a emergência da noção de opinião pública, ainda no Antigo regime, e confere destaque à inserção de duas mulheres no debate sobre os rumos da Revolução, bem como sobre os projetos de educação em disputa: Olympe de Gouges, autora de Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã (1791), e Mary Wollstonecraft, autora da Reivindicação dos direitos da Mulher (1792). O curso de caráter introdutório tem por objetivo apresentar uma seleção da obra dessas duas autoras, as quais por muito tempo foram esquecidas pela tradição do pensamento político. Pretende-se ainda tornar o debate mais complexo mediante a introdução de uma questão específica: como as mulheres se colocaram como agentes políticos dotadas de uma condição particular, no momento em que a estrutura da autoridade do Antigo regime estava em ruptura e a da nova sociedade estava em franco processo de legitimação, amparando-se em noções como “igualdade”, “direitos universais”, “liberdades individuais”?


[Justificativa]


Em fins do século XVIII, no período revolucionário, diversas “escritoras engajadas”, como vieram a ser conhecidas posteriormente certas mulheres, entre elas, Olympe de Gouges, Théroigne de Méricourt, Madame de Coicy, Manon Roland, bem como as "frequentadoras das tribunas" tematizavam a recusa dos direitos políticos às mulheres (especialmente, as do clero e as filhas e viúvas da nobreza – excluindo-se as mulheres do povo, cf. Le règlement royal du 24 janvier 1789). Outras, a exemplo de Louise de Kéralio, embora realizassem ofícios até então reservados aos homens e, desse modo, ocupassem os incipientes espaços públicos, contribuindo com a formação de clubes e associações políticas, não reivindicavam o seu direito de representação e participação política.

Todavia, não se deve esquecer que apesar da participação das mulheres em cadernos de queixas (cahiers de doléances), de sua assiduidade em associações paroquiais, de diversas regiões, os clubes femininos foram abolidos já em 1793; o Código civil que poderia conferir alguma igualdade em termos de representação política às mulheres foi sumariamente rejeitado pela Convenção, como também o foi o uso do próprio substantivo feminino “citoyenne”, por ser considerado que as mulheres estariam necessariamente compreendidas no termo “cidadão”. Além disso, as mulheres eram excluídas, de partida, dos lugares oficiais de poder – mesmo o revolucionário –, isto é, o exército, a guarda nacional e os tribunais (cf. Godineau, 2003). O curso discute a ambivalência da instituição de uma nova forma de sociedade, de um espaço público definido como republicano, que excluiu de seus autos, de suas obras referenciais, da memória da Revolução, portanto, a participação ativa das mulheres no espaço político mediante a escrita de petições, a criação e a participação em clubes e em assembleias.

Além da intensa participação política das francesas, as mulheres também figuraram dos debates da época sobre obras que mais tarde consideraríamos de “teoria política”. Na repercussão da Revolução francesa, conhecida como a “Controvérsia da Revolução 1789-1795”, o outro lado do Canal da Mancha disputou intensamente os seus princípios. O debate ficou registrado em torno do discurso de Richard Price, A Discourse on the Love of our Country (1789), a resposta de Edmund Burke em Reflections on the Revolution in France (1790) e, por fim, a defesa de Thomas Paine dos princípios da revolução em The Rights of Man (1791), mas Mary Wollstonecraft e Catharine Macaulay também escreveram, rebatendo a publicação de 1790 de Burke. A resposta de Wollstonecraft, A Vindication of the Rights of Men, é publicada ainda em 1790, e nela a autora defende tanto Price quanto os direitos e liberdades individuais, além de já sinalizar a preocupação que seria o tema de sua obra mais conhecida, Reivindicação dos Direitos da Mulher (1792): a condição da mulher bem como a “tirania do homem”, entendendo-se por isso um poder arbitrário que acometia não apenas a sociedade naquele período, mas a própria estrutura hierárquica familiar. No caso da segunda Reivindicação (1792), a obra é endereçada a Talleyrand-Périgord, o então responsável pelo plano de educação nacional para a França, e a condição feminina é discutida a partir da educação oferecida às meninas. Nesse sentido, portanto, a década de 1790 foi um momento de virada para as escritoras britânicas (Walker, 2011).

O curso tem por objetivo explorar o momento em que as mulheres escreviam sobre a Revolução e incontornavelmente sobre a própria condição. Elas não somente opinavam sobre os acontecimentos políticos, mas o faziam de modo explícito e direto no debate público sobre os rumos da França e da Inglaterra, questionando a sua própria condição. Se a Declaração é um marco dos acontecimentos da Revolução francesa, não deixa de ser uma armadilha a essas mulheres apoiá-la quando ela mesma falha em assegurar o direito à participação política, à representação, à fala nas tribunas. Em uma palavra, quando as mulheres têm a sua condição, inclusive a de cidadãs, objetada. Trata-se de uma contribuição fundamental não apenas para os avanços teóricos contemporâneos e pela possibilidade de reavaliar o nosso próprio vocabulário político em face de debates do passado, mas também por discutir obras citadas nos debates feministas contemporâneos, mas ainda pouco estudadas. Se, como afirma Duran, “o trabalho das mulheres filósofas foi enterrado, literalmente e metaforicamente” (2006, p. 1), cabe a nós desenterrá-las e, parafraseando Skinner (1999, p. 90), “trazer de volta para a superfície tesouros intelectuais enterrados”.


[Programa]

Contextualizando um debate: quais mulheres participaram e de que modo se inseriram na discussão mais geral da Revolução francesa? A escrita de brochuras e petições como modos de intervenção na opinião pública e na construção do incipiente espaço público;

A escrita e a palavra pública das mulheres como modo esquecido de agência política: um debate com a historiografia tradicional da Revolução francesa.

Declaração dos Direitos da Mulher, de Olympe de Gouges: da ideia de igualdade à uma declaração parcial dos direitos;

A Inglaterra debate a Revolução: Reivindicação dos Direitos da Mulher, de Mary Wollstonecraft, e os projetos de educação pública;



[Bibliografia]

Dada a dificuldade de encontrarmos material em língua portuguesa e a carga horária do curso, apenas a bibliografia assinalada (*) será considerada obrigatória, de modo a não constituir obstáculo à participação. As demais serão indicadas oportunamente e as professoras fornecerão a tradução durante as aulas.

BOUR, Isabelle. (2013). « A New Wollstonecraft : The Reception of A Vindication of the Rights of Woman and of The Wrongs of Woman in Revolutionary France ». Journal for Eighteenth-Century Studies (revue de la British Society for Eighteenth-Century Studies) V.36.n.4, pp. 575-587.

COICY, Madame de Coicy. (1785). Les femmes comme il convient de les voir ou apperçu de ce que les femmes ont été, de ce qu’elles sont et de ce qu’elles pourraient être (Paris, Londres).

DURAN, Jane. (2006). Eight Women Philosophers: Theory, Politics, and Feminism. Urbana; Chicago, University of Illinois Press.

ESTACHESKI, Dulceli de Lourdes Tonet; MEDEIROS, Talita Gonçalves. “A atualidade da obra de Mary Wollstonecraft”. Revista Estudos Feministas (UFSC. Impresso), v. 25, p. 371-374, 2017.

FAURÉ, Christine « Doléances, déclarations et pétitions, trois formes de la parole publique des femmes sous la Révolution », Annales historiques de la Révolution française [En ligne], 344 | avril-juin, 2006.

GODINEAU, Dominique. (2013). “Femmes et violence dans l’espace politique révolutionnaire”. Historical Reflections/ Réflexion Historiques, V. 29, n. 3, pp. 559-576

* GOUGES, Olympe. (2020). Avante, Mulheres! Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã e outros textos. São Paulo: Edipro.

LANDES, Joan B. (1996). “The Performance of Citizenship: Democracy, Gender, and Difference in the French Revolution”. In: S. Benhabib (ed.). Democracy and Difference: Contesting the Boundaries of the Political. Princeton: Princeton University Press.

MIRANDA, Anadir dos Reis. (2010). Mary Wollstonecraft e a reflexão sobre os limites do pensamento liberal e democrático a respeito dos direitos femininos (1759-1797). Dissertação de mestrado em História, Universidade Federal do Paraná.

MIRANDA, Anadir dos Reis. (2017). Proto-feministas na Inglaterra Setecentista: Mary Wollstonecraft, Mary Hays e Mary Robinson. Sociabilidade, subjetividade e escrita de mulheres. Tese de doutorado em História, Universidade Federal do Paraná.

MORIN, Tania Machado. (2014). Virtuosas e Perigosas. As mulheres na Revolução Francesa. São Paulo: Alameda Editoral.

MOTTA, Ivânia Pocinho. (2009). A importância de ser Mary. São Paulo: Annablume.

SINGHAM, Shanti Marie. (1994). “Betwixt Cattle and Men: Jews, Blacks, and Women, and the Declaration of the Rights of Man”. In: D. Van Kley (org.) The French Idea of Freedom: The Old Regime and The Declaration of Rights of 1789. Stanford: Stanford University Press.

SKINNER, Quentin. (1999). “A liberdade e o historiador”. In: Liberdade Antes do Liberalismo. São Paulo: Editora UNESP.

TAYLOR, Barbara. (2003). Mary Wollstonecraft and the feminist imagination. New York: Cambridge University Press.

WALKER, Gina Luria. (2011). “Women’s Voices”. In: P. Clemit (org.) The Cambridge Companion to British Literature of the French Revolution in the 1790s. Cambridge: Cambridge University Press.

* WOLLSTONECRAFT, Mary. (2016) [1792]. Reivindicação dos direitos da mulher. São Paulo: Boitempo Editorial.

WOLLSTONECRAFT, Mary. (2009). A Vindication of the Rights of Woman and A Vindication of the Rights of Men. Edited by Janet Todd. Oxford: Oxford University Press.