Programa

OBJETIVOS
O mito de Sísifo é um mito decisivo, diríamos evocando Albert Camus, que joga com a homofonia entre Le Mythe de Sisyphe (título de seu ensaio sobre o absurdo) e le mythe décisif. Um “mito decisivo”, por isso tomado como ponto de partida de nosso curso, para refletir sobre os anseios e fardos do ser humano, sobretudo numa época de reencontro traumático com o absurdo nas formas visíveis e invisíveis da tragédia, acentuadas pela pandemia da COVID-19. Condenado pelos deuses ao repetidamente fracassado esforço de empurrar montanha acima um enorme rochedo para vê-lo voltar a cair ao sopé, Sísifo, à luz da releitura de Camus, se revela uma metáfora de forte expressividade e atualidade para uma reflexão crítica sobre o “tempo cíclico” da repetição de desencontros, errâncias, torpezas, dores, desamparos que, segundo Camus, fazem da existência humana um drama em que o amor como que “natural” do homem pela vida é desafiado incessantemente por eventos e tendências hostis ao nosso anseio por bem-estar, liberdade, justiça. Essa tensão, por sua vez, se não for acobertada pelos velhos esquemas mistificatórios, favorece uma tomada de consciência que, ao invés do suicídio (concreto ou “filosófico”), leva a uma reafirmação da vida, do valor (que não se confunde com o suposto sentido) de viver, numa dinâmica ético-existencial à qual Camus dá o nome de revolta. Apesar das conotações bélicas e iracundas que se poderiam associar a uma palavra como revolta, sua específica configuração conceitual em Camus embute uma forte carga “erótica”, no sentido que o Eros tem em Freud como potência de religação, anseio de unidade, não às tendências destrutivas e separativas de Tânatos (a pulsão de morte). A revolta impulsiona os seres humanos à solidariedade diante de seu destino absurdo em comum. É um afeto positivo pela vida, uma espécie de élan vital que quer a vida e a vida em abundância, neste mundo, aqui e agora, sem os adiamentos do gozo impostos pela repressão social e pelas promessas metafísicas. O absurdo e a revolta só compactuam com o “ódio” (ou com a melancolia destrutiva) quando mal compreendidos em sua real natureza; daí virarem pretexto para condutas niilistas que a filosofia de Camus tenta refutar, como o suicídio e o assassinato. Amor (e o ódio) à vida, absurdo e revolta, tais como Camus os pensa filosoficamente na trilogia de ensaios Núpcias, O mito de Sísifo e O homem revoltado, e em suas possíveis ressonâncias ou releituras dentro do escopo da psicanálise de Freud, são o ponto de partida e fio condutor do presente curso. Além da reconstrução cuidadosa desses conceitos, procuraremos ver como entram “em ação” na obra literária do próprio Camus (em particular no romance A peste, de 1947) e em outros dois textos de grande afinidade temática com a tensão entre a condição humana absurda e o afeto do ódio em suas derivas totalitárias: “A infância de um chefe”, um dos cinco contos de Sartre reunidos em O muro (1939) e a peça O rinoceronte, de Ionesco. A psicanálise ajuda a compreender o ódio enquanto paixão política. Movidas pelo ódio, as pessoas têm suas possibilidades de diálogos reduzidas, bem como se achatam os espaços para as diferenças, trazendo apenas soluções rasas para problemas complexos. Agressividade, devemos lembrar, não é o mesmo que ódio na psicanálise. A agressividade é importante para nos diferenciarmos do outro, para nos constituirmos. O ódio é ruptura, uma potência tirânica avassaladora que pode romper a experiência de continuidade de subjetivação. As chamadas redes sociais amplificam o alcance e os danos, inclusive políticos, da propensão humana ao ódio como um modo de autodissolução da responsabilidade e da lucidez da consciência nas correntezas grotescas da mentalidade gregária e do simplismo binário. Alguns aspectos do corpus teórico freudiano, como as noções de inconsciente, repetição/elaboração de sintomas, das Unheimliche, mal-estar na civilização e narcisismo das pequenas diferenças serão convocados a ampliar e concretizar as reflexões sobre o absurdo e a revolta propostas por Camus.

METODOLOGIA
Buscando uma aproximação de filosofia e psicanálise entre si e com a imaginação literária, partimos da preocupação de salvaguardar diferenças, salientar a singularidade dos pontos de vista disciplinares, das visões de mundo e das obras evocadas, o que não reduz, bem pelo contrário, amplifica, a riqueza do diálogo. A genialidade de Camus, como escritor e filósofo, parece ter entre seus segredos a maestria do manejo de um dispositivo fluido como o ensaio, gênero que até no seu nome, para não dizer de sua longa tradição especificamente francesa, traz em si a marca da ousadia experimental, de “tentativa” (essai) por sucessivas e diferentes aproximações, do rigor das perguntas desprovido de dogmatismo nas respostas. Tais virtudes epistemológicas vão nos inspirar seja no momento da reconstrução da lógica interna da reflexão de Camus, seja no seu uso em diálogos para além dela mesma.
Assim também, no que tange ao papel da psicanálise, há aqui a preocupação ética em não violentar a especulação filosófica e a criação literária com o vício do reducionismo. Apostamos na passagem da tradicional psicanálise aplicada para uma psicanálise implicada, nos moldes desenvolvidos especialmente por João Frayze-Pereira.
As aulas serão compostas por exposições teóricas, slides e discussão coletiva dos textos.

PROGRAMA
Aula 1
Apresentação geral do curso e dos conceitos-chave, como absurdo, revolta e o ódio, em sua imbricação entre as teorias de Camus e de Freud.

Aula 2
Discussões sobre o ensaio O Mito de Sísifo para aprofundamento da problemática do absurdo. O “tempo cíclico” de Sísifo e seus paralelos na filosofia de Nietzsche e no fenômeno psicanalítico da compulsão da repetição.

Aula 3
A peste, de Camus –do absurdo à revolta, do indiferentismo individualista à resistência antitotalitária. “A peste”, que Freud disse a Jung que eles estavam levando para os Estados Unidos na célebre viagem de 1909 para o país dos “self-made men”: uma metáfora do (não-) sentido subversivo da psicanálise.

Aula 4
A Infância de um chefe, de Sartre e O Rinoceronte, de Ionesco: vinhetas da captura afetiva de um indivíduo e de toda uma coletividade pelo apelo do ódio.

JUSTIFICATIVA
A obra de Albert Camus vem sendo cada vez mais reconhecida como um referencial fundamental para a reflexão sobre nossos “tempos de peste” –não só da pandemia do novo coronavírus, mas também da ressurgência de velhos fantasmas político-ideológicos que vêm nos ameaçar com retrocessos até pouco tempo atrás inimagináveis. Absurdo e revolta, amor à natureza (inclusive à nossa própria natureza) e solidariedade são temas camusianos de impressionante atualidade. Revisitá-los, ainda mais à luz de um diálogo, raramente encontrado na bibliografia especializada, com a psicanálise de Freud, nos parece uma aventura de grande interesse, e isso não apenas para o público acadêmico mais restrito, com também para toda pessoa instigada a pensar e a se pensar a fundo em um dos períodos mais críticos de nossa história.

ATIVIDADES DISCENTES
Leitura dos textos, participação nas discussões.

CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO
Participação nas aulas, presença em 75% das aulas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARONSON, Ronald, Camus e Sartre – O polêmico fim de uma amizade no pós-guerra. Trad. Caio Liudvik. Rio de Janeiro: ed. Nova Fronteira, 2007.
CAMUS, Albert, Núpcias, O verão. Trad. Vera Queiroz da Costa e Silva. Rio de Janeiro: ed. Nova Fronteira, 1979.
CAMUS, Albert, Essais. Paris. Gallimard, 2000.
CAMUS, Albert, O mito de Sísifo. Trad. Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: ed. Record, 2007.
CAMUS, Albert, O homem revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: ed. Record, 2008.
CAMUS, Albert, A peste. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: ed. Record, 2017.
FRAYZE-PEREIRA, J. A., Arte, dor: inquietudes entre estética e psicanálise. Cotia: Ateliê editorial; 2010.
FREUD, Sigmund., O infamiliar e outros escritos. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Vol 8. Belo Horizonte: Autêntica Editora; 2019.
FREUD, Sigmund, Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Além do Princípio de Prazer, psicologia de grupos e outros trabalhos (1920-1922). Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago; 1996.
FREUD, Sigmund, Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. A história do movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago; 1996:192.
FREUD, Sigmund, O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras; 2010.
IONESCO, Eugène, O rinoceronte. Trad. Luís de Lima. Rio de Janeiro: ed. Nova Fronteira, 2015.
KAST, V., Sísifo- A mesma pedra, um novo caminho. Trad. Erlon José Paschoal. S. Paulo: Cultrix, 1997.
MENDES, Mauro, O discurso da estupidez. São Paulo: Iluminuras, 2020.
SARTRE, J.-P., O muro. Trad. H. Alcântara Silveira. Rio de Janeiro: ed. Nova Fronteira, 2015.
STAAL, Ana de & LEVINE, Howard, Psicanálise e vida covidiana. S. Paulo, ed. Blücher, 2021.
WILSON, Colin, O outsider. Trad. Margarida Maria C. Oliva. S. Paulo: ed. Martins Fontes, 1985.
WORMS, Fréderic, La Philosophie em France au XXe Siècle- Moments. Paris: Gallimard, 2009.